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Glia e ataxia

Atualizado: 11 de set. de 2023

Os dois principais tipos de células no cérebro são os neurônios e a glia, que supera amplamente os neurônios em quantidade. O termo 'glia' é derivado da palavra Grega para 'cola', pois se acreditava que o papel das células gliais era 'manter os neurônios unidos'. No entanto, diversos estudos já demonstraram que a glia desempenha muitos outros papéis de extrema relevância para o desenvolvimento, o bom funcionamento e também a morte dos neurônios. Há diferentes tipos de células gliais (astrócitos, oligodendrócitos, micróglia) que fornecem suporte estrutural e funcional para os neurônios, além de terem suas próprias funções não diretamente relacionada com o suporte neuronal (por exemplo, atuar no sistema imunológico que protege o cérebro).


Os oligodentrócitos, por exemplo, fornecem a bainha de mielina que envolve os axônios (entre os nós de Ranvier) e melhora a velocidade da sinalização (transmissão de potenciais de ação) nos neurônios do SNC (Sistema Nervoso Central), da mesma forma como as células de Schwann produzem a mielina que envolve os axônios dos neurônios do SNP (Sistema Nervoso Periférico). Defeitos na mielização podem afetar a condução normal de impulsos nervosos e estão associados com diversas doenças, por exemplo, a neuropatia periférica conhecida como Doença de Charcot-Marie Tooth [4].


As micróglias representam cerca de 10% das células gliais e formam o sistema imunológico do cérebro e da medula, em um papel semelhante ao desempenhado pelos glóbulos brancos na corrente sanguínea. Quando ocorrem danos ao cérebro (como infecções ou traumas), as microglias alteram sua morfologia e expressão genética, e são recrutadas para o local onde ocorreu o problema podendo executar ações neuroprotetoras (por exemplo, livrar o cérebro de proteínas tóxicas, preservar a homeostase cerebral), mas também podem contribuir para processos inflamatórios ao liberar proteínas neurotóxicas e induzir o processo de astrocitose reativa que voltaremos a mencionar mais adiante [4].


Os astrócitos participam de diversos processos celulares importantes, estando fortemente associados com suporte na sinalização sináptica (tanto na formação quanto na estabilização), no controle das concentrações iônicas extracelulares e na regulagem da concentração de neurotransmissores [4].


No cerebelo - estrutura especialmente afetada nas ataxias espinocerebelares - há um tipo especial de astrócito chamado glia de Bergmann, diretamente relacionado com um neurônio presente em uma das camadas do cerebelo denominado célula de Purkinje. Há ainda outros tipos de glia especializadas no cerebelo, como os astrócitos velados (Velate Astrocyte). Ver figura abaixo.

Crédito da imagem: [1]


Estudos têm mostrado que estas células da glia podem ter influência relevante em diversas funções neurais e também em vários tipos de doenças, como a Síndrome de Rett, a ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) e a doença de Alzheimer, e podem estar também envolvidos nas ataxias. De fato, já existem evidências de que os astrócitos cerebelares desempenham papel importante não apenas na progressão, mas também na idade de surgimento de sintomas de diferentes formas de ataxias [1].


No caso das pesquisas sobre ataxias, há grande foco nos impactos da doença nos neurônios do cerebelo (como as células de Purkinje e outras), o que é compreensível em função da atrofia cerebelar presente nas ataxias espinocerebelares, bem como em neurônios de outras áreas do sistema nervoso. Entretanto, a relação entre as ataxias (e outras doenças neurológicas) e as diferentes células da glia ainda é pouco explorada pelos pesquisadores.


Já há muitos indícios de que a glia pode desempenhar papel mais relevante nas ataxias [2]. Por exemplo, já foi verificada a ativação de micróglia em análises post-mortem de pacientes humanos e em modelos animais, o que sugere que a glia pode desempenhar papel no processo inflamatório de neurônios em pacientes com ataxias. Também já se constatou degeneração na matéria branca do cérebro (white matter) nas ataxias SCA2,SCA3,SCA7, SCA10 e na AT (ataxia Telangiectasia), o que pode ter relação com disfunções na glia (oligodendrócitos), além da perda neuronal. De fato, já se verificou que a mutação na expressão do gene ATXN3 na SCA3 pode afetar o processo de transcrição em oligodendrócitos, o que pode impactar diretamente na atrofia da matéria branca e, por sua vez, ter relação com os sintomas da SCA3.


É preciso ter em mente que a expressão dos genes mutantes que causam ataxias não ocorre apenas em neurônios, mas também na glia. Por exemplo, na ataxia espinocerebelar tipo 1 (SCA1) a mutação no gene ATXN1 afeta tanto os neurônios (células de Purkinje) quanto a glia que envolve estes neurônios, incluindo astrócitos e oligodendrócitos. Um estudo (Borgenheimer et al) mostrou que na ataxia espinocerebelar tipo 1 (SCA1) ocorrem mudanças nos genes de células gliais, em modelos com ratinhos (mouse models). Este estudo sugere que disfunções nos oligodendrócitos podem ter relação direta com os sintomas da SCA1 [2].


Dado que a glia é essencial para o bom funcionamento neuronal, pode-se esperar que disfunções nas células da glia produzam impactos nos neurônios associados, podendo levar inclusive à sua degeneração. O processo de astrogliose (astrocitose reativa) [3] é importante neste contexto. É uma ação de defesa (iniciada pela micróglia) por parte dos astrócitos contra neurônios mutantes ou com comportamento anormal. Pode ocorrer em resposta à danos no SNC por trauma, infecções, acidentes vasculares cerebrais, respostas autoimunes e também em doenças neurodegenerativas (como as ataxias). Neste processo, os astrócitos podem se transformar em um tipo especial "A2" que tenta salvar os neurônios, mas também podem se transformar no tipo "A1" que é capaz de secretar neurotoxinas letais para os neurônios (o que contribui para a perda neuronal e progressão de sintomas nas ataxias), em um processo de astrocitose reativa com efeitos negativos para pacientes com ataxias.


Em modelos animais da ataxia SCA1, esta reação detrimental (prejudicial) ocorreu mesmo antes de se verificar qualquer sintoma motor, ou seja, a astrogliose não foi causada pela degeneração dos neurônios, já que se manifestou antes, e sim por algum tipo de sinal genético emitido pelo próprio neurônio contendo mutação, talvez como um mecanismo antecipado de defesa visando impedir que um gene mutante expresse suas proteínas mal fornadas.


Se este de fato é o caso, a astrogliose do tipo "A2" com o tempo se tornaria prejudicial ao paciente por "matar" os neurônios com genes mutantes, e assim poderia piorar ou causar ela própria disfunções neuronais que causam os sintomas motores de ataxias. O estudo mais aprofundado das diferentes formas de interação entre a glia e os neurônios é bastante importante pois pode abrir novos caminhos para o desenvolvimento de medicamentos para as ataxias.


Referências


1. Cerebellar Astrocytes: Much More Than Passive Bystanders In Ataxia Pathophysiology - Valentina Cerrato

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7141261/


2. Beyond Purkinje cells: Glial cell changes in a mouse model of Spinocerebellar ataxia type 1

https://www.ataxia.org/scasourceposts/beyond-purkinje-cells-glial-cell-changes-in-a-mouse-model-of-spinocerebellar-ataxia-type-1/


3. Astrogliose

https://pt.wikipedia.org/wiki/Astrogliose


4. Principles of Neural Science. Sixth Edition. McGraw-Hill. Eric R. Kandel et al.

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