A estimulação magnética transcraniana (TMS) na modulação do córtex cerebral foi introduzida em 1985, após o sucesso da estimulação elétrica transcraniana com corrente contínua (Transcranial direct current stimulation, ou “tDCS”). Em ambos os casos, uma corrente elétrica é utilizada para estimular o cérebro. Na tDCS a corrente elétrica é aplicada diretamente. Já na estimulação magnética (TMS), a corrente elétrica é gerada por indução (a variação de um campo magnético no tempo induz o aparecimento de um uma corrente elétrica no cérebro).
A estimulação magnética na TMS pode ser por pulsos únicos que se repetem a cada 5 ou 6 segundos, por exemplo, ou com pulsos gerados contínuamente com certa frequência (em Hz). Neste caso, quando a estimulação ocorre por pulsos repetitivos, o método é referido pela sigla rTMS ("repetitive TMS").
Há também uma outra técnica relacionada mas que não deve ser confundida com a neuromodulação que estamos discutindo aqui. Trata-se da estimulação cerebral profunda (DBS - Deep Brain Stimulation), já utilizada com bons resultados por exemplo na Doença de Parkinson. Na DBS são implantados dispositivos dentro no cérebro para tentar alcançar áreas mais profundas (e inacessíveis para métodos não invasivos como a rTMS e a tDCS). É trabalho do neurocirurgião, não do fisioterapeuta.
Um ponto importante a considerar neste tipo de estudo é que é os resultados dependem muito das configurações (setup) utilizadas, e há muitos parâmetros para se ajustar na neuromodulação, tanto na tDCS quanto na TMS ou rTMS. Por exemplo:
- Qual é a melhor intensidade para a corrente elétrica?
- Por quanto tempo a corrente deve ser aplicada?
- É melhor uma corrente maior por menos tempo, ou uma corrente mais fraca por mais tempo?
- No caso de geração de pulsos repetitivos como na rTMS, qual é a melhor intensidade para o campo magnético (em Teslas), e qual é a frequência mais adequada para gerar os pulsos (em Hz)?
- Em quantas sessões o processo deve ser repetido?
- Onde exatamente a corrente deve ser aplicada, ou qual é o melhor "alvo" para a estimulação? É melhor estimular neurônios específicos, como as células de Purkinje, ou estruturas como o núcleo dentado do cerebelo? É possível obter esta precisão de estimular uma área específica sem afetar outras neste método?
- Etc.
Sendo assim, é natural que alguns ensaios utilizem configurações que se revelem mais ou menos eficazes, obtendo resultados melhores ou piores. Isso é perfeitamente normal, afinal este é um dos objetivos dos ensaios clínicos - ajudar os cientistas a testar hipóteses e descobrir as melhores configurações para a eficácia e a segurança das terapias em teste.
Daqui por diante vamos utilizar o termo NMOD para indicar “neuromodulação” seja por tDCS ou por TMS.
NMOD nas ataxias
Já se comprovou que o campo elétrico gerado no cérebro na NMOD produz efeitos sobre as estruturas neurais, por exemplo, estimulando ou inibindo a comunicação entre neurônios, e o que se espera é que esta estimulação tenha *efeitos benéficos* em algumas doenças neurológicas, como as ataxias espinocerebelares e outras. Esta é a hipótese que se deseja testar - de que a neuromodulação faz bem para sintomas de ataxias - ainda que os fundamentos teóricos não estejam ainda claramente consolidados.
Em seguida, vamos comentar aqui alguns resultados do estudo com pacientes com ataxia SCA3 (DMJ), Atrofia Cerebelar de Múltiplos Sistemas (MSA tipo C) e ataxia por lesão. Estes resultados são discutidos na Tese de Doutorado da Dra. Carina França, denominada "Efeitos da estimulação magnética transcraniana profunda nas ataxias cerebelares: um ensaio clínico randomizado, duplo-cego e cruzado", apresentada à Faculdade de Medicina da USP.
De acordo com a tese acima mencionada, já foram realizados diversos ensaios clínicos de diferentes tipos de modulação cerebelar. De todos estes, apenas um NÃO reportou melhorias (por exemplo, em "andar 10 metros sem auxílio", "número de passos em tandem" etc.). Isso, entretanto, NÃO significa que "já existe comprovação científica" dos benefícios da técnica - nenhuma terapia deste tipo foi ainda aprovada pela ANVISA no Brasil para ataxias (ver Notas 1 e 2 ao final).
No estudo da Dra. Carina e equipe, os pacientes receberam 5 sessões de estimulação magnética transcraniana repetitiva (rTMS, 1Hz) no cerebelo. O estudo foi registrado no clinicaltrials.gov (protocolo NCT03213106).
Tipo: intervencional (ensaio clínico)
Participantes: 24 pacientes com SCA3
Idades: entre 29 e 74 anos
Sessões: 10, sendo 5 sessões de EMT e 5 sessões de placebo, em ordem aleatória, duplo-cego, com intervalo mínimo de 28 dias entre as sessões (washout).
Término: Estudo completado em 2019.
Para avaliar resultados primários (melhoria em sintomas de ataxia foi feita uma análise de pontuação inicial (baseline) na escala SARA (Scale for the Assessment and Rating of Ataxia), e outra análise ao final do tratamento. Já para avaliar resultados secundários (melhoria em outros sintomas motores, cognitivos e de qualidade de vida), foi utilizada a escala ICARS (International Cooperative Ataxia Rating Scale).
Resumo dos resultados:
1 - A pontuação na escala SARA foi menor para pacientes que receberam a estimulação do que dos pacientes que receberam as sessões de placebo (média de 10.2 versus média de 12.8 pontos). Embora uma diferença de 1 ou 2 pontos em uma escala de 40 pontos possa parecer pouco, estes resultados são considerados clinicamente relevantes.
2 - Houve também melhoria na escala ICARS (média de 29.0 versus 32.8).
3 - O protocolo foi bem tolerado e considerado seguro. Não houve efeitos colaterais severos. Alguns efeitos colaterais leves e transitórios ocorreram em 9 dos 24 pacientes.
4 - As melhorias em sintomas de ataxia verificadas são limitadas, e podem variar bastante de paciente para paciente.
5 - As melhorias são reversíveis.
Em resumo, o estudo da Dra. Carina e equipe indicou que o procedimento d-rTMS pode potencialmente beneficiar pacientes com diferentes tipos de ataxias. Obviamente o estudo tem limitações, descritas na Tese da Dra. Carina ("Discussion - 66. Limitations, pg. 75), relacionadas por exemplo com a heterogeneidade da população estudada, o baixo número de pacientes testados (24), e a impossibilidade de realizar todos os testes em todos os pacientes. Houve melhoria nos sintomas de ataxia dos pacientes envolvidos no estudo, mas as diferenças na pontuação da escala SARA foram pequenas, embora possam ser consideradas clinicamente relevantes.
EM RESUMO, apesar dos resultados da NMOD serem promissores também para as ataxias, ainda é preciso fazer mais estudos, e coletar mais dados. Como a própria Dra. Carina explica, é necessário realizar ensaios maiores (com mais pacientes) e com maior duração com frequências diferentes para confirmar se a NMOD (no caso em estudo, a d-rTMS) é de fato uma alternativa terapêutica eficaz para pacientes com ataxias.
Fonte: Tese de doutorado, Dra. Carina Cura França
Ver artigo https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32920321/
Notas
1 - A resolução 434 do COFFITO (Conselho Federal de Fisioterapia e de Terapia Ocupacional) de 2913 que “Reconhece a utilização das técnicas fisioterapêuticas de estimulação transcraniana pelo fisioterapeuta” não é muito clara em relação a “para que a NMOD pode ser utilizada (ver https://www.coffito.gov.br/nsite/?p=3196). A nota do COFFITO alega que “existe nível de evidência fisioterapêutica pré-clínico e clínico da utilização das estimulações elétrica e magnética transcraniana para o tratamento, no âmbito da Fisioterapia, de indivíduos com o objetivo de controle da dor, melhora da função sensório-motora e cognitiva” e reconhece no Art. 1 “a utilização das técnicas fisioterapêuticas de estimulação transcraniana, seja para diagnóstico fisioterapêutico e respectivo tratamento” como atividades próprias ao fisioterapeuta. O parecer não elabora muito sobre o que significa “melhora da função sensório-motora”, como a melhora é medida, ou por quanto tempo a melhora persiste após a terapia. Também é pouco clara na questão da aplicabilidade da técnica.
2 - Atualmente no Brasil a NMOD é aprovada (ANVISA) apenas para “depressão unipolar refratária ao tratamento medicamentoso, depressão bipolar e esquizofrenia com quadros de alucinações auditivas, além de poder ser usada para mapeamento cerebral em neurocirurgia”. Fora deste escopo, (por exemplo, o uso da NMOD em tratamento de alguns sintomas típicos de ataxias espinocerebelares) pode ser realizado como pesquisa, ensaio clínico ou tratamento experimental.
Pelo ponto de vista ético, o fato do fisioterapeuta cobrar (R$) do paciente por participação em um estudo, ensaio clínico, estudo ou tratamento experimental baseado em NMOD merece reflexão, CONSIDERANDO que um fisioterapeuta NUNCA deveria cobrar do paciente por participarão em estudo clínico ou tratamento experimental. Enquanto é estudo, deve ser DE GRACA. Está na resolução 466 da CONEP, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (ver https://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2013/06_jun_14_publicada_resolucao.html)
Além disso, há outros cuidados que devem ser observados, por exemplo, se o equipamento utilizado é aprovado pela ANVISA, se o paciente é informado sobre os riscos, se o profissional assina algum termo de responsabilidade por efeitos não previstos, inclusive pagamento de assistencia médica caso necessária, e se for tratamento experimental, se há um termo de consentimento esclarecido explicando o procedimento para o paciente assinar.
[Post publicado em 28/04/2023 por Márcio Galvão]