Princípios do SUS e Doenças Raras
Reflexões sobre os Princípios doutrinários e organizativos do SUS e sua aplicação na prática para pessoas com ataxia e outras doenças raras.

Princípios do SUS
O Sistema Único de Saúde (SUS), conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (art. 198) e regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), é orientado por princípios doutrinários e princípios organizativos.
Princípios Doutrinários (valores éticos e filosóficos)
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Universalidade
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A saúde é direito de todos e dever do Estado.
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Todas as pessoas devem ter acesso aos serviços de saúde, sem discriminação.
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Equidade
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Reconhece que tratar desigualmente os desiguais é necessário para reduzir desigualdades em saúde.
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Distribui recursos conforme as necessidades específicas de cada população.
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Integralidade
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O cuidado deve ser completo e contínuo, considerando o ser humano como um todo.
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Inclui diagnóstico, promoção, prevenção, tratamento e reabilitação.
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Princípios Organizativos ( funcionamento)
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Descentralização
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A gestão do SUS é compartilhada entre os três níveis de governo (União, Estados e Municípios).
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Visa aproximar a gestão das necessidades locais.
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Regionalização e Hierarquização
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Os serviços são organizados em níveis de complexidade (atenção básica, média e alta complexidade).
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A regionalização busca organizar esses serviços de forma coordenada e eficiente no território.
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Participação Social
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A população tem direito de participar da formulação e controle das políticas públicas de saúde, por meio de Conselhos de Saúde e Conferências de Saúde.
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A imagem ao lado mostra um resumo dos Princípios do SUS:


Princípios do SUS e as Doenças Raras
No atendimento a pacientes com doenças raras e pessoas com deficiência (PCD), os princípios do SUS devem ser aplicados com mais rigor e sensibilidade, considerando as necessidades específicas dessa população.
Vejamos como cada princípio deveria se adaptar para esses grupos, destacando alguns ajustes e demandas:
🔷 Universalidade
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Ajuste: Nada no princípio em si, mas na prática o SUS deve garantir acesso real, e não apenas teórico.
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Pessoas com doenças raras muitas vezes enfrentam falta de diagnóstico, centros especializados e protocolos clínicos, o que viola esse princípio.
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🔷 Equidade
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Ajuste: A equidade exige ações afirmativas para compensar as desvantagens desses pacientes.
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Paciente típico -> atenção. Paciente com doença rara/PCD -> atenção diferenciada.
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Paciente típico -> medicamento. Paciente com doença rara -> medicamentos órfãos. Devido ao número reduzido de pacientes, esses medicamentos geralmente não despertam interesse comercial suficiente para serem desenvolvidos sem incentivos públicos ou regulatórios.
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Demanda: Transporte sanitário para pacientes com mobilidade reduzida.
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Demanda: Priorização no atendimento, exames e terapias em função da gravidade ou progressão da condição.
🔷 Integralidade
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Ajuste: O atendimento de pacientes com doenças raras deve ser multidisciplinar e contínuo.
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Encaminhamento ineficaz pelo SISREG, muitas vezes é pontual e segmentado, o paciente fica se deslocando entre diferentes serviços, em diferentes locais.
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Demanda: um paciente com ataxia hereditária e outras doenças raras não precisa só de neurologista, mas também de fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, assistência social e reabilitação física.
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Demanda: O cuidado deve abranger a vida inteira, sobretudo em doenças degenerativas ou sem cura.
🔷 Descentralização
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Ajuste: Exige que as três esferas de governo se articulem melhor para garantir acesso equitativo mesmo em regiões distantes.
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Em muitas regiões do Brasil, pacientes com doenças raras precisam se deslocar centenas de quilômetros para encontrar centros especializados, o que contraria esse princípio.
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Demanda: Financiamento tripartite para garantir a regionalização dos centros de referência em doenças raras.
🔷 Regionalização e Hierarquização
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Ajuste: O modelo hierárquico padrão (atenção básica → média → alta complexidade) precisa ser flexibilizado. É preciso agilizar o acesso para a alta complexidade em muitos casos.
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Muitos pacientes com doenças raras não se beneficiam da atenção básica inicial, pois seus sintomas são atípicos e o conhecimento da doença é muito baixo na atenção primária.
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Demanda: Protocolos de referência e contrarreferência devem ser mais rápidos e ágeis para que o paciente chegue logo aos serviços especializados.
🔷 Participação Social
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Ajuste: As pessoas com doenças raras e deficiência devem ser ativamente incluídas nos conselhos e conferências de saúde. Muitos conselhos locais ainda não representam adequadamente essas vozes.
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Demanda: Apoio à criação de grupos de representação específicos
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Demanda: Financiamento e incentivo à formação de lideranças em doenças raras/deficiência.


Avaliação Biopsicossocial
NA TEORIA
A avaliação biopsicossocial no SUS (Sistema Único de Saúde) é um instrumento multiprofissional utilizado especialmente para avaliar pessoas com deficiência, com foco na concessão de direitos, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), isenções fiscais, ou acesso a serviços de reabilitação. Essa avaliação considera três dimensões fundamentais da vida da pessoa:
Dimensão Biológica: Funções e estruturas do corpo (ex.: mobilidade, visão, audição).
Dimensão Psicológica: Aspectos mentais e emocionais (ex.: cognição, comportamento).
Dimensão Social: Participação e interação com o meio (ex.: barreiras no trabalho, escola, transporte, acessibilidade).

Base legal
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Baseia-se na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), da OMS.
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Já prevista no § 1º do Art. 2º da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. - Estatuto do PCD), a avaliação biopsicossocial foi incorporada ao SUS por meio de normativas como o Decreto nº 10.415/2020 e o Decreto nº 11.487 de 2023,
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Utiliza o Instrumento Unificado de Avaliação Biopsicossocial, aplicado por equipe multiprofissional (ex: médico, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional).
Como é feita na prática?
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A pessoa é avaliada por duas ou mais especialidades, com base em critérios padronizados.
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Considera o grau de funcionalidade e a limitação nas atividades e participação social, e não apenas o diagnóstico da doença.
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O objetivo é reconhecer o impacto real da condição da pessoa em sua vida diária.
Para que serve?
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Concessão de benefícios como:
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BPC/LOAS
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Isenção de IPI/ICMS na compra de veículos
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Isenção de imposto de renda por incapacidade
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Planejamento terapêutico e encaminhamentos para serviços de reabilitação
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Avaliação de elegibilidade para políticas públicas
NA PRÁTICA
A avaliação biopsicossocial no SUS, embora seja um avanço importante para garantir uma análise mais justa e contextualizada da deficiência, enfrenta sérios desafios na prática, especialmente para pessoas com doenças raras como as ataxias.
O que deveria acontecer (funcionamento ideal)
A avaliação biopsicossocial foi criada para:
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Substituir o modelo exclusivamente biomédico (baseado apenas no laudo clínico);
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Avaliar barreiras contextuais, limitações funcionais reais, nível de participação social;
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Garantir equidade para pessoas com deficiências menos visíveis ou flutuantes, como nas doenças raras;
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Padronizar decisões no acesso a benefícios sociais e políticas públicas (como o BPC/LOAS).
O Brasil é um país desigual e há muitas demandas e poucos recursos, logo é preciso reconhecer a complexidade da implementação de um programa com este escopo.

Principais falhas e deficiências na adoção atual
1. Baixa implementação nos municípios
Muitos municípios ainda não aplicam o Instrumento Unificado de Avaliação Biopsicossocial, por falta de capacitação técnica, profissionais disponíveis e infraestrutura tecnológica.
2. Falta de formação das equipes
Profissionais do SUS não são adequadamente treinados para avaliar doenças raras (como ataxias, que têm sintomas complexos e flutuantes).
3. Invisibilidade das doenças raras
Muitas ataxias não produzem sinais clínicos evidentes nos estágios iniciais (por ex., diplopia, fadiga, perda de equilíbrio podem ser subestimadas). A degeneração progressiva não é valorizada adequadamente sem histórico e laudos especializados. Pacientes com aparência “normal” frequentemente não têm sua limitação funcional reconhecida.
4. Burocracia e demora
O agendamento da avaliação pode demorar meses. A aplicação dos instrumentos é demorada e desconexa da realidade local, muitas vezes repetitiva. Não há integração com os laudos de especialistas de centros de referência em doenças raras.
5. Inconsistência nos critérios
Avaliações feitas por equipes diferentes podem gerar resultados contraditórios. Pessoas com a mesma condição podem receber decisões diferentes dependendo do município.
Relevância da avaliação biopsicossocial para doenças raras como as ataxias
Na teoria, há muitos pontos positivos. Por exemplo, o modelo reconhece que o impacto funcional é mais importante do que o nome da doença. Além disso, a avaliação pode beneficiar pacientes com sintomas intermitentes, como fadiga, desequilíbrio ou disartria.
Mas na prática...
• As ataxias são pouco conhecidas pelos avaliadores;
• Os sintomas não são facilmente quantificáveis por escalas generalistas;
• Falta articulação com centros de referência em doenças raras (conforme a Portaria 199/2014);
• Muitos pacientes relatam negação do BPC/LOAS mesmo com incapacidade real para o trabalho.
Como é possível melhorar?
Problema: Baixa capacitação dos profissionais
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Formação específica (Educação Continuada) sobre doenças raras e deficiências invisíveis
Problema: Falta de uniformidade nas decisões
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Supervisão nacional das avaliações; uso de pareceres técnicos externos, integração com laudos de centros de referência em doenças raras.
Problema: Ausência de protocolos específicos para doenças raras.
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Criar anexos complementares para orientar a avaliação de pacientes com doenças raras.
Problema: Demora e burocracia.
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Informatização do processo, respeito aos prazos máximos definidos por lei.
SE VOCÊ TEM ATAXIA OU ALGUMA OUTRA DOENÇA RARA, INFORME-SE SOBRE OS PROCESSOS ADEQUADOS DE CONTROLE SOCIAL DA SAÚDE.
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Aprenda o básico sobre Advocacy e ATS (Avaliação de Tecnologias de Saúde) e o papel da ANVISA e da CONITEC na aprovação de medicamentos.
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Aprenda como colaborar com a melhoria das Políticas Públicas, de forma eficaz e organizada.
Seja um protagonista na luta pelos direitos das pessoas com ataxias e outras doenças raras.

Referências
Abaixo são listadas as referências e fontes consultadas para a geração do conteúdo desta página.
Institui o Grupo de Trabalho sobre a Avaliação Biopsicossocial Unificada da Deficiência no âmbito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Institui o Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência.
Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, é a Lei Orgânica da Saúde, que estabelece as diretrizes para a organização e funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Ela define as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços de saúde, e dá outras providências relacionadas à saúde pública.